top of page
Âncora 1

A primeira regulamentação de bebidas no Brasil partiu de uma exigência da Lei nº 5823/72, assinada pelo então ditador militar e presidente do país, Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Ela foi revogada e atualizada com pareceres semelhantes por Itamar Franco (1992-1995), que sancionou a Lei nº 8.918/94, de 14 de julho de 1994. O novo código garantia ao Poder Executivo o direito de fixar regras sobre a classificação, a padronização, a rotulagem, dentre outras diligências relativas à inspeção e à fiscalização dos estabelecimentos industriais, artesanais e caseiros. Começava, neste período, um imbróglio de promessas e interesses que se arrasta até hoje, sem definições específicas a respeito da produção de cerveja em menor escala.

Três anos depois, em 1997, o Decreto nº 2.314/97 regulamentou a lei anterior prometendo, em seu parágrafo 4 do artigo 36, determinações legais e específicas para a legalização de cervejarias não-industriais nos próximos decretos. O Ministério da Agricultura e do Abastecimento (Mapa) passou a fixar normas complementares para instalações e equipamentos mínimos ao funcionamento dos estabelecimentos, incluindo os artesanais e caseiros.

 

A regulamentação, porém, ficou apenas na promessa e caiu no esquecimento do Mapa. Em 2009, o Decreto nº 2.314/97 foi revogado e substituído pelo Decreto nº 6.871/09, que não mencionava qualquer norma de interesse dos produtores artesanais e caseiros. Ou seja, os produtores caseiros, artesanais e industriais sempre foram mencionados em condição desleal, sem adendos ou pontuais menções às diferenças entre as produções e suas respectivas exigências. Multinacionais e cervejas produzidas na cozinha de um pequeno domicílio foram, até 2012, classificados em nível de igualdade, sendo tratados como estabelecimentos que transformam produtos primários em cerveja.

 

Em 6 de novembro de 2012, o Mapa lançou sob consulta pública a Portaria nº 142, que pretendia regulamentar a produção de cervejas em diferentes escalas no país. Pela primeira vez, os termos “artesanal” e “caseiro” são citados, mas sem muita clareza. O artigo 11 dizia que cervejarias artesanais ou caseiras só poderiam ser classificadas assim caso apresentassem produção anual máxima de 30 mil livros, quantidade esta considerada pequena para microcervejeiros e sem nenhuma base de cálculo apresentada para justificar os patamares de produção. Até hoje, o governo tem dificuldade para distinguir bebidas caseiras, artesanais, especiais e industriais. Severamente criticado por representantes do segmento artesanal desde sua aprovação, o texto deixa claro que os cervejeiros artesanais necessitam obter as mesmas autorizações e alvarás que uma cervejaria já consolidada e regulamentada possui para legalizarem seus respectivos negócios.

 

Esta é a principal reclamação dos nanocervejeiros de Lumiar e São Pedro da Serra. "Essa lei não é a nossa. Poderia ter uma legislação diferente das grandes cervejarias para a gente. Se a gente for legalizar nossa cervejaria com uma lei dessa, é um absurdo de imposto. Pela demanda e pelo que eu faço hoje, é baixa produção, não valeria a pena. A gente não se encaixa nessa lei, não tem como a gente funcionar. Deveria haver um escudo, uma força-tarefa para nos estudar e aí sim fazer uma regulamentação, uma legislação nova e aplicar fiscalização baseada nosso jeito de trabalhar", reclama Thiago Emerson, da Lumiar Moutain Bier. 

Bruno Leitão, cervejeiro da Ilegal, reflete sobre a elitização das regras cervejeiras e analisa a legislação atual: "Pro cara que começa do zero, é impossível. Essa é a grande sacanagem que fazem com os caseiros. Todo cervejeiro começa fazendo cerveja em panela, a não ser que o cara já comece milionário, com equipamento automatizado. Então por que não deixar? Se o cara tem um projeto e pretende legalizar, porque não entrar em um acordo de fiscalização menos bruto, de dois em dois meses, com acompanhamento, assinando um termo de responsabilidade?", propõe.

No ano de 2009, o deputado Rogério Mendonça sugeriu o Projeto de Lei nº 5.191/2013 como nova alternativa. O PL pretendia regulamentar o setor cervejeiro com condições menos burocráticas, mas seu texto repete diversas normas da Portaria nº. 142 inclusive a quantidade teto de 30 mil litros por ano de cerveja. Por outro lado, o segundo parágrafo aponta que o Mapa teria de "simplificar os procedimentos e adequar suas exigências às finalidades e dimensões que caracterizam a produção artesanal". Este projeto de lei, no entanto, ainda não obteve aprovação no congresso. 

Subordinada à Lei nº 8.918/94e ao Decreto nº 6.871/09, os requisitos para registro de estabelecimentos de produção, armazenamento e comercialização de cervejas, sejam caseiras, artesanais ou industriais, estão dispostos na Instrução Normativa MAPA nº 17, de 23 de Junho de 2015. A instalação de tubulações, depósitos e pontos de água potável para higienização e limpeza, sistema de escoamento e áreas de armazenamento de produtos acabados e devolutos estão entre as exigências. O documento também prevê a análise das receitas a serem fabricadas para que seja feito um controle de qualidade das bebidas e verifique-se a competência dos produtores.

 

A batalha vencida do Simples Nacional

 

Demorou, mas saiu. Desde 2011 semeando o campo para a inclusão das microcervejarias no Simples Nacional – regime tributário brasileiro diferenciado que simplifica e favorece empresas de pequeno porte –, a Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) comemorou, junto aos cervejeiros de todo País, a sansão presidencial da lei que contempla as microcervejarias neste regime especial de tributação. A atualização da lei foi assinada por Michel Temer em 27 de outubro de 2016, adicionando estabelecimentos de produção de bebidas artesanais (cervejas, cachaças, licores e vinhos) à lista de beneficiados. Antes de passar pela aprovação de Temer, a medida havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados, contemplando emenda do deputado Covatti Filho (PP-RS). O novo Simples Nacional, no entanto, só passa a valer em 2018.

Em entrevista à Rádio CBN, o presidente da Abracerva e sócio da Cervejaria Invicta, Rodrigo Silveira, comemorou a decisão e projetou dias melhores para o setor: “Foi uma vitória, o reconhecimento de um setor que vem batalhando há anos. Hoje os impostos chegam em até 60% do faturamento, em tributos. A lei do Simples Nacional vai possibilitar uma economia de 32%. Vai transformar um setor que não era viável, que trabalhava com margens negativas, em algo possível. Vai reduzir a folha de pagamento e acreditamos que, de imediato, dois terços das cervejarias existentes no país vão entrar no Simples. Com isso, vão aumentar o número de fábricas no país e muita coisa boa pode acontecer”, vibrou o empresário, que vê o consumidor como grande beneficiado pela medida. “Somos 426 microcervejarias. Centenas de outras irão abrir com o passar do tempo. O mercado vai crescer e ter mais variedade de cerveja. Mais cervejarias comprarão insumos, garrafas e barris, fomentando a cadeia de produtos. Isso vai privilegiar o grande público cervejeiro”.

Questionado sobre a postura das grandes empresas com a decisão favorável às microcervejarias, Rodrigo negou que a medida seja desfavorável às multinacionais. “É um nicho de mercado onde as grandes cervejarias não conseguem chegar. Hoje somos menos de 1% do setor. Não tem porque nos encarar como grandes inimigos ou grandes concorrentes. A gente faz um trabalho hoje que elas não têm condições de fazer. Elas primam pela alta produção e volume. Nós produzimos cervejas diferenciadas, complexas, para um nicho específico de mercado que vem crescendo e, óbvio, desperta interesse das grandes marcas”, concluiu.

Ouça a entrevista completa:

Gerente do Sebrae - Áudio Whatsapp
00:00 / 00:00
Presidente da Abracerva - Áudio Whatsapp
00:00 / 00:00
Presidente da Abracerva - Entrevista à CBN
00:00 / 00:00

Legislação

cervejeira

A vitória parcial dos microcervejeiros, porém, por pouco não foi para o brejo. O próprio Rodrigo Silveira, dias antes da votação do Simples em Brasília, parecia crer que os cervejeiros bateriam novamente na trave. Informado sobre a ameaça de um possível veto às cervejarias, o empresário enviou uma mensagem de áudio a um grupo de cervejeiros no whatsapp solicitando uma mobilização de todos os membros da associação. O apelo tinha como objetivo reforçar os pedidos de audiência com o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, ou com o presidente Michel Temer, para tentar convencê-los a sancionar a lei. “A gente precisa de uma mobilização bem forte. Quem tiver contato de deputado e senador, que pegue o telefone e ligue, mande uma mensagem, fale em nome da Abracerva, solicitando uma audiência com o Padilha ou até mesmo com o Temer. Já estamos costurando isso, mas quanto mais gente ajudar, mais provável a chance de conseguirmos”.

“Lobby” no congresso e doações em campanhas eleitorais


Até a sansão presidencial que garantiu às microcervejarias a diminuição da carga tributária, os empreendedores da área percorreram um longo caminho. Em 2014, fabricantes de cerveja, vinhos, cachaças e licores artesanais assistiram à rejeição dos deputados a uma proposta de inclusão destes produtos no Simples. Apenas dois deputados federais foram favoráveis à inclusão das cervejarias artesanais no programa de incentivo do governo. São eles Amauri Teixeira (PT-BA) e Glauber Braga (PSOL-RJ), este último derrotado na eleição de 2016 para prefeito de Nova Friburgo (RJ). Ele chegou a ter a fala interrompida durante a sessão, fruto de um corte no microfone, exatamente no instante em que denunciava a influência das multinacionais nas votações do congresso.

"Um registro também, presidente, em relação ao lobby que em determinados momentos é realizado pelas grandes cervejarias para impedir a votação de matérias, por exemplo, para produtos artesanais. Esse é um tema que nós não podemos deixar de debater de forma bastante concreta, até porque..." (o microfone é desligado, e o deputado continua após o retorno do som) "... Para concluir, presidente. Num processo em que grandes empresas, grandes cervejarias tentam impedir o trabalho de produtores artesanais de micro e pequenas empresas. Nós temos, sim, que ficar ao lado daqueles que têm a oportunidade de gerar emprego no Município, que têm a oportunidade de fazer, no final das contas, com que nosso País possa se desenvolver. Em defesa das micro e das pequenas empresas, em defesa dos produtos artesanais, esta matéria tem que, também, ser enfrentada por este Plenário", declarou Gláuber.

Veja o pronunciamento:                                                                                                            

Quem também convocou cervejeiros e empresários a tomarem providências às vésperas da sansão presidencial foi gerente de Programas Estratégicos do Sebrae-RJ, Lídia Espindola: “A gente está fazendo uma solicitação para todo mundo, empresários, representações, associações, para analisar a possibilidade de estar presente em Brasília para essa mobilização contra o veto para cerveja, cachaça e vinho”, disse.

legal, deixando claro o interesse das empresas nas discussões legislativas. O próprio relator do projeto do Simples, que vetou as cervejas artesanais em 2014, Claudio Puty (PT-PA), encheu os cofres com R$ 125 mil enviados pela Schin em 2010, segundo o blog "Dois dedos de colarinho", do O Globo.

Outro esquema de doação para políticos foi veiculado pela Veja, em março de 2016. Segundo a publicação, planilhas apreendidas pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal, na casa do presidente de um dos braços da Odebrecht, uma das maiores construtoras do Brasil, indicam que o grupo pode ter usado distribuidoras de cerveja para mascarar doações eleitorais a políticos.  Essas contribuições referem-se às eleições em 2010, 2012 e 2014, podendo ter superado a cifra de R$ 30 milhões. São citados como beneficiados neste esquema nomes de peso na política nacional, como o senador e candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais, Aécio Neves (PSDB-MG), além do ex-ministro da Educação, Aloizio Mercadante (PT), e do atual governador licenciado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ).

Embora pareça distante de Brasília, o núcleo deste cenário de decisões sobre as leis do setor cervejeiro, a região de Lumiar e São Pedro da Serra acompanha de perto e sente na pele a ausência da renovação da lei que há 22 anos não é renovada. Bruno Leitão salta o verbo quando o assunto são os políticos que tem decidido contra seus interesses:

"Essa dificuldade e demora na desburocratização acontece puramente por causa da máfia. Cachorro grande não vai deixar cachorro pequeno subir né, cara. A Ambev não está deixando. Quando nego faz sucesso, a Ambev já investe forte e compra". Helton Almeida, proprietário e chef de cozinha da Oficina da Gastronomia, restaurante já tradicional na região comercial de Lumiar, relata que pequenas cervejarias de Lumiar e Nova Friburgo já foram alvos do chamado "cachorro grande". "Existe um lobby por trás. Não interessa para as grandes empresas, como a Itaipava. Já houve ação mais forte do Mapa. Barão Bier e Ranz, no início, sofreram muito. A ação foi motivada pelo lobby da Itaipava, pois eles sofreram mais diretamente uma perda de mercado. A Ambev, não, é muito maior e tem cervejas que são imbatíveis. Não por serem boas, mas porque tem nome", conta. 

Este tipo de pressão das grandes empresas sobre o                                   executivo, buscando controle sobre as decisões no                                               Congresso Nacional, é notável e está longe de ser uma                                         novidade na política nacional. A título de comprovação                                       destas ações, alguns escândalos envolvendo o nome de                                        grandes cervejarias, divulgados pela imprensa, figuram                                       como esclarecedoras do cenário sórdido das sessões                                           em Brasília. Segundo uma pesquisa feita pelo jornalista                                       Roberto Fonseca, da Veja, três das maiores empresas                                           cervejeiras no país – Ambev, Petrópolis e Brasil Kirin –                                         doaram mais de R$ 19 milhões aos políticos nas                                                     eleições de 2010. Naquela época, o financiamento 

privado de campanhas por pessoas jurídicas ainda era

bottom of page